quarta-feira, 6 de julho de 2011

AS LEMBRANÇAS DE ANTONIO CANDIDO SOBRE O AMIGO OSWALD DE ANDRADE

DE  PARATY


O curador da Festa Literária Internacional de Paraty, Manuel da Costa Pinto, ainda fazia as honras da casa e destacava o fato de o evento em 2011 receber escritores de dez países, além do Brasil, quando a Tenda dos Autores explodiu em aplausos - era o professor e crítico literário Antonio Candido quem entrava em cena, tomava assento e assumia a condição de protagonista da conferência de abertura da FLIP, uma homenagem ao escritor modernista Oswald de Andrade (1890-1954). "Sou um sobrevivente, um dos poucos amigos vivos de Oswald, embora eu seja trinta anos mais moço. Quero hoje contar a vocês quem ele foi. É um testemunho de afeto", anunciou Candido, logo no início de sua fala.

Ele lembrou que conheceu o irreverente modernista em 1940, por intermédio de um amigo comum - Paulo Emílio Salles Gomes. Três anos depois, Candido teceu críticas contundentes a um livro de Oswald, que se zangou - e replicou com violência, como era seu costume. A relação - que nem bem havia começado - ficou estremecida. Em 45, Candido reconheceu que havia exagerado e cometido injustiças intelectuais. Publicou então um longo ensaio, com outra perspectiva de análise sobre a obra de Oswald. Naquele mesmo ano, encontraram-se em uma livraria. Oswald teria tomado a iniciativa: "eu fui duro, você me respondeu com serenidade. Proponho sermos amigos, muito amigos". E foi de fato o que aconteceu.

Na noite fria de Paraty, Candido lembrou que há escritores que têm uma vida tão intensa que acabam tendo suas obras devoradas por suas biografias - Oswald seria um desses autores. Aqui estaria inclusive uma das razões que ajudaria a explicar o conhecimento relativamente reduzido a respeito dos livros dele. "Oswald foi um ativista intelectual, um agitador excêntrico. Várias foram as lendas construídas em torno dele. A personalidade acaba concentrando muito mais atenções que os escritos que deixou", reforçou o crítico. 

Antonio Candido não perdeu a oportunidade de narrar episódios saborosos e marcantes dessa personalidade. Contou que, num belo dia, em 1950, Oswald anunciou que estava decidido a prestar concurso para professor de Filosofia da Universidade de São Paulo. O crítico e amigo sugeriu que não fizesse aquilo. "Você não é filósofo, já está por aí o Existencialismo, não vai dar certo", argumentou. "É meu direito. Sou brasileiro, tenho mais de 21 anos. Por que não posso?", retrucou o modernista. Antonio Candido insistiu: "Porque você não vai dar conta das perguntas feitas pelo examinador". Oswald não se fez de rogado. E desafiou. "Pois então faça aí uma pergunta". Antonio Candido imaginou que estivesse dando o golpe de misericórdia. "Qual é a impostação da problemática ontológica?". A resposta de Oswald foi ligeira e cortante, exemplo cristalino do brilhantismo verbal que só ele carregava. "Senhor examinador, o senhor está atrasado, nessa devoração universal em que vivemos, a problemática não é mais ontológica, mas odontológica". A plateia caiu na gargalhada. E aplaudiu.  

As dificuldades para editar e publicar livros à época de Oswald foram também citadas por Antonio Candido como outra razão para a obra do escritor modernista não ser tão conhecida e valorizada como mereceria. "Jovem, só encontrei o Serafim Ponte Grande para vender uma vez, em Poços de Caldas. Nem o Oswald tinha muitos exemplares do livro. Falava-se dele sem saber ao certo o que havia escrito", lamentou. De uma certa maneira, esse desconhecimento deu-se ainda por conta e graça das reações do próprio Oswald, sempre muito pouco disposto a ler ou ouvir críticas sobre o que escrevia. "Quem mexia com ele levava pancada, sem dó", reconheceu Antonio Candido, na abertura da FLIP. "E ele respondia com sarcasmo, com ironias, desmontando os críticos, esmagando as pessoas, que ficavam então com muito medo. E não escreviam mais sobre a obra dele", completou. 

A ira de Oswald não tinha limites, era invariavelmente cruel. Com raiva, era capaz até mesmo de recorrer a argumentos racistas e de desdenhar de problemas físicos de seus adversários. Antonio Candido contou que, em 1947, Oswald foi deixado de fora, graças a Mario Neme, chefe da delegação paulista, do II Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em Belo Horizonte. Enfurecido, Oswald passou a chamar o desafeto de "grão-turco de Piracicaba", uma forma para lá de pejorativa e agressiva de se referir às origens de Mario (que não era turco, mas libanês), além de qualificá-lo como tirano (grão = sultão) e caipira (o que era na época uma tremenda ofensa).  

Apesar de pouco suscetível a críticas, Oswald era, nas palavras e nas memórias de Antonio Candido, um sujeito que não sabia viver só, precisava de afeto, de carinho, de companhia, gostava de estar sempre cercado por muita gente. "Não guardava rancor. Passada a explosão, para ele estava acabado, resolvido. Seguia em frente". Para o amigo e crítico literário, o modernista era flexível nas opiniões (xingava e elogiava), mas constante e coerente com suas ideias. "Devorava o mundo e queria saber sobre tudo", acrescentou. Foi sempre um inconformado com as injustiças da sociedade burguesa, lutava por um mundo sem donos. "Havia uma marca de anarquismo nele, que defendia que a razão das injustiças eram os padrões e comportamentos masculinos. Para ele, o homem era sinônimo de 'meu'; a mulher, de 'nosso'. Na visão dele, a sociedade patriarcal teria feito surgir a propriedade privada", analisou Antonio Candido. 

Segundo o amigo, o grande sonho final de Oswald, manifestado quando já estava muito doente, era a restauração da dimensão utópica da vida, o sonhar e lutar por um mundo mais justo. Para Antonio Candido, um dos principais legados do modernismo brasileiro, de forma geral, e de Oswald, de maneira mais específica, foi mostrar que a literatura séria é compatível com a brincadeira. "Oswald soube usar a arma do riso. Carregava o claro riso dos modernos. Não era nada de bicho papão... Era só não brigar com ele", definiu, encerrando sua fala.

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