Guardo
poucas lembranças do almoço daquele Dia dos Pais, 12 de agosto de 1990. Acho
que engoli a comida com duas ou três garfadas, dez mastigadas. No máximo. Não
prestei atenção às normalmente divertidas conversas familiares. Estava nada
preocupado em degustar ou apreciar o sabor ou tempero do macarrão ao sugo, do
bife acebolado, da salada de tomate, batata frita. O cardápio não deve ter
escapado muito disso, é o tradicional em nossas reuniões. Está bom de sal? E o
molho? Quer esquentar mais um tiquinho? Quer mais? Sei lá. Tinha trabalho da
faculdade. Ficou para depois. Paciência. Dou um gás durante a semana. Juro, não
era só a ressaca da balada da noite anterior. Naquele domingo, apenas o show da
Legião Urbana, no Parque Antártica, tinha importância. Estado máximo de
excitação. Geração coca-cola. Os ingressos tinham sido comprados fazia mais de
mês. Horas na fila, numa loja na rua Augusta, acho. Senta, levanta, anda.
Espera. Senta, levanta, anda. Discute. Reclama. Ombradas, malandros tentando
passar na frente, ele estava guardando para mim. Cai fora. Lá no fim. Compra
pela internet? A gente nem imaginava que um dia seria possível. Também não
tinha corredor exclusivo de ônibus, bilhete único, ciclofaixa, embora a então corajosa
prefeita Luiza Erundina travasse uma batalha hercúlea para garantir a qualidade
do transporte público na cidade. Subimos no primeiro Lapa 175-H que passou,
linha que cortava a avenida Sumaré, do viaduto Paulo VI à praça Marrey Junior.
Melhor dizendo, nos penduramos na porta de trás (ainda era por onde se entrava)
no ônibus superlotado. Não nos mexíamos, Torcíamos para o motorista ser
bonzinho e compreensivo e não arriscar qualquer manobra mais ousada. O
escapamento soltava uma fumaça preta horrorosamente fedida. Respiramos tudinho.
Na esquina do estádio, o trânsito travou. Bateu aquele dilema - e agora, como
vamos pagar essa porcaria? Nem pensar em chegar até a catraca. Impossível.
Princípio de confusão e gritaria. Pula, pula, salta, sai logo. Vai começar o
show. Não vamos pagar? Não era momento para arroubos de honestidade. A massa
ensandecida começou a empurrar. Entendi a mensagem - ou pula ou será pulado.
Quando armei e calculei o salto acrobático, sei lá se foi de sacanagem ou
porque precisava avançar mesmo, o motorista acelerou. Não tão de leve. Foi o
suficiente. Tombaço. Caí estatelado no meio da rua. De joelhos. Agora reza e
pede perdão pelo calote, moleque babaca, deve ter pensado o motorista. Para não
passar mais vergonha, tentei levantar rapidinho, cara de paisagem, como se nada
tivesse acontecido. Ficou pior ainda. Ainda sem equilíbrio, sem saber ao certo
aonde estava, atordoado, caí de novo. Que vergonha. Tudo bem, tudo bem. Sem
machucados. Só a calça rasgada. Estilo. Óbvio, na madrugada, depois do show,
sem a adrenalina, doeu para cacete. Até hoje, nas rodas de amigos e em
encontros familiares, a queda legionária é motivo de gargalhadas. Finalzinho de
tarde, o velho Palestra já estava iluminado. Vinha gente de todos os lados - da
Turiaçu, da Pompeia, da Diana, da Tucuna, do viaduto Antártica. Gente cantando,
gente bebendo, gente gritando, gente correndo. Vários rolezinhos. Sempre que
conto essa história, Luiza, minha filha mais velha, cheia de pudores éticos
(que bom), manda um "pai, não acredito que você furou fila! Você, todo
certinho, furou fila no show do Legião!". Não, filha. não furei. Sério
mesmo. Porque não existia fila. Eram multidões que se empurravam nas apertadas portas
de acesso. Godos, visigodos e ostrogodos deviam se comportar dessa maneira em
espetáculos que frequentavam. Decidimos entrar de vez naquela dança e tomar de
assalto o Império Romano. Assumimos nossa porção bárbara. Seguimos o embalo.
Sobrevivemos. Nem sonhem com lugares marcados, numerados. Senta no primeiro
centímetro quadrado vazio que encontrar. Andamos até o setor oposto ao palco.
Ali, ali, rápido. Chegamos. Uns dez minutos antes do início do show.
Coincidência – dali, vi muitos jogos do Santos. Ali, oito anos mais tarde,
perderia - e reencontraria – a aliança de casamento. Corre à boca pequena que é
por conta dessa façanha que a arena passou a se chamar Alianz Parque. Bem, é outra
história. O gramado era um formigueiro humano. Cadeiras e arquibancadas
superlotadas. Lá fora, a confusão continuava. Muita gente ainda tentando
entrar. Ficaríamos depois sabendo que teve rolo com ingresso falso. Biógrafos estimam
que foi o maior show da história da banda. Há quem fale em cem mil pessoas no
estádio. Exagero. Umas sessenta mil. A Legião subiu ao palco pouco depois das
oito da noite. Renato Russo vestia a tradicional bata branca. Carregava uma
rosa também branca na boca, que colocou bem perto do microfone. Antes de dar
boa noite, avisou: “nenhuma guerra pode ser santa”. O Iraque acabara de invadir
o Kwait. Os Estados Unidos, preocupadíssimos em preservar acesso às reservas de
petróleo do Oriente Médio, já se movimentavam para combater as tropas de Saddam
Hussein, na primeira Guerra do Golfo. A invasão aconteceu em janeiro de 1991. Vivíamos
os tempos difíceis do Plano Collor. Contas e poupanças tinham sido confiscadas
e bloqueadas. O desemprego era galopante. Havia um pessimismo que tomava conta
de todos. Muita gente queria ir embora daqui. Via meus pais perdendo o sono,
fazendo contas. Cortando gastos. Meus irmãos mudando de escola. Eu procurava
estágio. Virava adulto. Naquela noite de agosto, o líder da Legião estava
inspiradíssimo. Elétrico e incrivelmente sóbrio – no que podia ser a sobriedade
de Renato. Entrei em estado de transe. O show foi meu divã. Durante pouco mais
de duas horas, me deixei transportar para outra dimensão. O mundo real ficou
para trás. Esqueci o medo de uma guerra mundial, deixei de lado a angústia da
falta de projeto nacional. No palco, a Legião enfileirava petardos. Renato
cantava “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, “quem me dera, ao menos uma vez, provar que quem tem mais do que
precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante e fala
demais por não ter nada a dizer”, “temos todo tempo do mundo”, “quantas
chances desperdicei, quando o que eu mais queria era provar pra todo o mundo que
eu não precisava provar nada pra ninguém”, “quero colo, vou fugir de casa,
posso dormir aqui com você. Estou com medo, tive um pesadelo”, “por que é mais
forte quem sabe mentir?”. Cantei. Pulei. Sonhei. Como se não houvesse amanhã. Legião, já no nome, era a antítese ácida daquele espírito individualista e negativo que insistia em nos contaminar. Um sopro, um respiro. Quando
as luzes do Palestra foram acesas, eu estava esgotado. Feliz. Realizado. Até
achava que dava para ser , quem sabe, um pouquinho mais otimista. Duraria pouco.
Eu sei. Eram dias duríssimos. Não foi
tempo perdido. Já não somos tão jovens. Mas Legião continua embalando meus
sonhos, pensamentos, lembranças, dúvidas, agonias. Minhas dores e meus amores.
E os da Elisa, da Luiza e do Daniel. Paixão de família. Basta entrar no carro
para ouvir o pedido “pai, coloca o CD do Legião”? É aquele duplo, ao vivo, com
a gravação do show daquela noite mágica de 1990. Emoções nostálgicas. Conto e
reconto essas histórias. Eles se divertem. Na semana passada, saindo da aula,
piscou o zapzap. Mensagem da Luiza. “Pai, você não acredita... vai ter show da
Legião! Vamos? Precisamos ir!”. Como eu posso recusar um convite desses? Chegou
outra mensagem. “O Dani também quer ir”. Há quem diga que é nessas horas que um
pai explode de satisfação. Corremos para comprar os ingressos. Sem filas. Vinte
e cinco anos depois. Que país é esse? Ainda não sei. A ansiedade é a mesma. Maior, talvez.
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