quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

DECRETAR PRISÕES ANTES DO FIM DO JULGAMENTO?


Gostaria de encerrar o ano com um texto mais alvissareiro. Mas não consigo negar que chegamos ao final de 2012 com certo cheiro de casuísmo jurídico e de arbítrio e exceção contaminando perigosamente os ares políticos respirados pela nação. 

A questão-chave é a seguinte: tecnicamente, em sentido mais preciso, o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal não terminou. Para garantir o constitucional amplo direito de defesa, os recursos produzidos pelos advogados dos condenados, que certamente serão apresentados, precisarão ainda ser analisados pelos magistrados - o que só poderá acontecer após a publicação dos acórdãos (decisões colegiadas dos ministros). Tarefas para 2013, com a responsabilidade, a serenidade e o equilíbrio exigidos pela democracia.

Ainda assim, o Procurador-geral da República, Roberto Gurgel, decidiu unilateralmente - mais uma vez - que é preciso acelerar o processo e solicitou ontem, quarta-feira, 19 de dezembro, as prisões imediatas de todos os condenados, por considerá-las urgentes. Note-se que o pedido foi feito justamente na véspera - literalmente - do início do recesso do Poder Judiciário, o que significa dizer que será analisado, em período de festas natalina e de reveillon, apenas e tão somente, de maneira monocrática, pelo presidente do STF, Joaquim Barbosa. Caso tivesse sido encaminhada um dia antes, a solicitação muito provavelmente teria sido avaliada pelo plenário (e, segundo o "Painel", da Folha de São Paulo, alcançaria apenas três votos favoráveis, com seis contrários). Oportunismo, casuísmo? Apenas coincidência de datas, alguns irão responder. Aliás, para Gurgel, ainda de acordo com a Folha de São Paulo, "os recursos não terão o poder de modificar o resultado do julgamento". Trata-se de evidente, privilegiada e sobrenatural capacidade de previsão de futuro. Ou de jogo com cartas marcadas. 

Não custa lembrar que o julgamento foi, desde o início, caracterizado por uma série de outras estranhas "coincidências": teve início em agosto, quando as campanhas para as eleições municipais também chegavam às ruas, com incontestável contaminação da disputa; a condenação do chamado núcleo político - leia-se sobretudo José Dirceu - deu-se entre o primeiro e o segundo turnos, com tempo de ainda ser explorada pelas narrativas midiáticas e no horário gratuito, pelos candidatos da oposição; numa manobra ardilosa e arbitrária de Barbosa, que inverteu a ordem das discussões quando se chegou à etapa da dosimetria, os réus políticos foram também os primeiros que tiveram as penas definidas, numa espécie de prestação de contas à sociedade. 

Agora, para deleite dos que clamam por sangue, dos que exigem o "mata, prende e esfola", mesmo que contrariando a essência da democracia, o roteiro parece estar novamente pronto: salvo engano e mudança brusca e repentina de comportamento, uma crise profunda de identidade, e a considerar tudo o que aconteceu no STF nos últimos meses, o mais novo ídolo e justiceiro da nação irá acatar o pedido da Procuradoria, determinando as prisões imediatas. 

Os executivos que fecham as primeiras páginas dos jornais já estão salivando e esfregando as mãos: numa época em que as manchetes em geral são "frias" (assuntos de menor relevância, traduzindo o jargão jornalístico), poderão estampar um certeiro "JOSÉ DIRCEU PRESO", em letras garrafais, ocupando metade da página, chamada que certamente estará acompanhada por uma foto estourada, com o ex-ministro algemado ou entrando na cela. Já consigo ouvir os urros histéricos de alegria, o espocar das rolhas de champanhe e o tilintar dos brindes.

Será a combinação perfeita para que a oposição midiática possa reafirmar, no "como queríamos demonstrar", que "o julgamento do mensalão foi um divisor de águas e que o Brasil entra em 2013 tendo finalmente aperfeiçoado seus mecanismos de combate à corrupção, ao colocar na cadeia aqueles que participaram do maior escândalo da República". O terreno estaria preparado para investidas políticas mais ousadas no ano que vem: como já escrevi por aqui, esses caras não vão sossegar enquanto não atingirem o coração do o ex-presidente Lula, para reescrever a história recente do Brasil e inviabilizar politicamente a participação dele na disputa presidencial de 2014. 

Antes dos espasmos de euforia, cinco segundos de reflexão: como raciocina meu irmão Eryx Bicudo, advogado porreta e danado de bom, caso as prisões aconteçam agora, quem vai pagar a conta se, no julgamento dos recursos das defesas, alguém tiver pena revista e passar do regime fechado para o semi-aberto? Pois é... 

Como já havia destacado o jornalista Paulo Moreira Leite em seu blog, ao se referir à cassação de mandatos de parlamentares determinada pelo STF, em tão cristalina quanto lamentável ingerência nas tarefas e prerrogativas do Legislativo, "não fica bem atropelar a Constituição. (...) Não é uma questão de gosto. É aquela vontade de não se submeter a um ritual definido e pré-determinado, amparado em lei, que todos devem respeitar. Muita gente está gostando de um Supremo que parece poder fazer tudo. São aquelas pessoas que desde 2002 só conhecem derrota atrás de derrota nas urnas. Em 2012, ficaram com um pouquinho mais de raiva porque perderam o altar sagrado da prefeitura de São Paulo. O que deixa o pessoal com mais medo quando pensa em 2014. Pensou perder de novo? Puxa, esse povo ganhava desde a chegada de Pedro Alvares Cabral…Então, com o Supremo, eles estão se animando". 

Sei não, deixo avaliações mais bem acabadas para os amigos historiadores, os cientistas políticos, mas a impressão que fica é que voltamos aos tempos em que um um tal Poder Moderador se colocava acima de todos os outros... Dom Joaquim Barbosa I? Ou talvez o STF esteja a dizer "às favas, nação brasileira, com os ritos e as normas constitucionais. Manda quem pode e obedece quem tem juízo". As duas experiências - o Império e a ditadura militar - foram trágicas. 

O alerta é novamente de Paulo Moreira Leite: "A experiência ensina: é muito fácil saber como esses jogos começam – e ninguém consegue adivinhar como terminam. Podem terminar mal. Ou muito mal. Apenas isso".    

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Como se vê, os desafios são gigantescos, e se acumulam. Aproveito a oportunidade para agradecer os generosos leitores que acompanharam este blog em 2012, desejando que os nossos sentimentos de esperança se renovem. Que continuemos sonhando, coletivamente, os sonhos impossíveis, reforçando as lutas cotidianas por livre pensar, direitos humanos e transformação social. À esquerda, sempre.  

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