Acordou cedo e, ainda antes de tomar o café, desligou todas as cercas eletrificadas, abriu a porta de casa e pegou os jornais do dia. Vangloriava-se de ser assinante dos mais importantes periódicos do país, os veículos de referência, os formadores de opinião. A revista semanal fazia parte desse nobre e valoroso elenco midiático. Por essa razão, achava-se também importante, diferenciado. Ainda com a cara amassada, deu uma rápida passada de olhos pelas manchetes. Teve o cuidado e a curiosidade de procurar também os títulos principais de cada caderno, principalmente os da editoria de Política. Ficou indignado. Bufou. Os olhos estavam vermelhos, quase saltando de tanta raiva. "Cansei!", exclamou. "Não é possível, preciso escrever sobre isso", completou. Mas estava atrasado. Tinha de levar o filho para a escola.
Na saída acelerada da garagem, cantando pneus - estava com pressa, oras -, quase atropelou uma senhora que andava calmamente pela calçada. Berrou: "saia da frente, minha senhora, não percebe que tenho hora, acha que estou brincando? Quer passear, olhar a paisagem? Vá ao parque!". O filho olhou assustado, mas nada falou. O pai era bravo. Tinha medo de contrariá-lo.
No caminho para a escola, cruzou dois sinais vermelhos. Parou em cima de faixas de segurança. Buzinou como uma besta fera, como se não houvesse amanhã. "Ninguém entende minha aflição?", perguntou-se. Ainda teve tempo de jogar pela janela a caixa de toddynho, que o filho tinha tomado. Dessa vez, o garoto encheu-se de coragem e perguntou: "pode, pai?". Irritou-se, mas respondeu, sem paciência: "eu já te disse que não tem problema. O lixeiro recolhe. É o serviço dele".
Bufou e estremeceu irado novamente quando não conseguiu lugar para estacionar perto do portão de entrada da escola, para que o garoto pudesse descer. Mas não se fez de rogado: parou ali mesmo, na fila dupla, era só um instantinho. Travou o trânsito. Sem remorso. "Bando de estúpidos, filhos da puta, não estão vendo que estou desembarcando uma criança? Seus inúteis!", resmungava, chacoalhando os braços e dirigindo-se a quem reclamava do automóvel parado em lugar proibido.
De rabo de olho, viu um fiscal da companhia de trânsito anotando a placa do carro dele em um talão de multa. "Vai, filho, vai, entra logo, preciso conversar com o moço ali". Largou o super carango último modelo do ano no mesmo lugar e correu para abordar o fiscal. "Puxa, muito bom dia, meu senhor, lamento, mas não tive jeito, sei que o senhor me entende, não tinha outro lugar... há algum jeito de a gente resolver essa questão?", perguntou, gentilmente, voz mansa, já colocando a mão no bolso e pegando a carteira.
Não teve conversa. Foi multado. Voltou para casa espumando, louco da vida. Se pudesse, teria arrebentado o marronzinho abusado. "Funcionário público é tudo vagabundo mesmo, não facilitam, é a indústria da multa". Chegando em casa, lembrou das manchetes dos jornais. Sentiu uma pontada no fígado. Ligou o computador. Entrou no twitter e no facebook. E começou a postar, freneticamente. Em caixa alta.
"GOVERNO CORRUPTO! PETRALHAS! BANDO DE LADRÕES. SAFADOS. TEM QUE SER CONDENADO MESMO, PEGAR PRISÃO PERPÉTUA. NÃO, É POUCO, PENA DE MORTE. E MAIS ESSA AGORA, AQUELE NOJENTO QUE ACABOU DE SER ELEITO JÁ ESTÁ DIZENDO QUE NÃO VAI CUMPRIR O QUE PROMETEU NA CAMPANHA. PICARETA. PILANTRA. CULPA DOS POBRES, LÓGICO, QUE O ELEGERAM. É DOSE, A GENTE RALA, ESTUDA E TEM QUE SER GOVERNADO PELAS ESCOLHAS DESSES POBRES QUE VIVEM DE BOLSA DISSO, BOLSA DAQUILO. POBRE NÃO DEVERIA TER DIREITO DE VOTO. NORDESTINO TAMBÉM NÃO. NÃO SABEM ESCOLHER, NÃO TÊM CONSCIÊNCIA....".
Parou, numa fração de segundo. Bateu a mão na testa. "Puxa, preciso fazer o artigo da pós-graduação! É para hoje!". Respirou. Sossegou. Lembrou de um texto bacana de um especialista supimpa, que tinha lido na internet - na diagonal, é verdade, mas parecia bem bom. Era só copiar e colar, ajustar aqui, mudar um pouquinho a introdução, o final. E o trabalho estaria pronto. Beleza.
Foi tomar um café. O fígado ainda doía. Não conseguia esquecer as manchetes do dia. "Esse país não tem jeito. Tinha que voltar a ditadura militar", pensou alto.