terça-feira, 30 de outubro de 2012

CRÔNICA DE UM CIDADÃO ESCLARECIDO E CONSCIENTE

Acordou cedo e, ainda antes de tomar o café, desligou todas as cercas eletrificadas, abriu a porta de casa e pegou os jornais do dia. Vangloriava-se de ser assinante dos mais importantes periódicos do país, os veículos de referência, os formadores de opinião. A revista semanal fazia parte desse nobre e valoroso elenco midiático. Por essa razão, achava-se também importante, diferenciado. Ainda com a cara amassada, deu uma rápida passada de olhos pelas manchetes. Teve o cuidado e a curiosidade de procurar também os títulos principais de cada caderno, principalmente os da editoria de Política. Ficou indignado. Bufou. Os olhos estavam vermelhos, quase saltando de tanta raiva. "Cansei!", exclamou. "Não é possível, preciso escrever sobre isso", completou. Mas estava atrasado. Tinha de levar o filho para a escola.
Na saída acelerada da garagem, cantando pneus - estava com pressa, oras -, quase atropelou uma senhora que andava calmamente pela calçada. Berrou: "saia da frente, minha senhora, não percebe que tenho hora, acha que estou brincando? Quer passear, olhar a paisagem? Vá ao parque!". O filho olhou assustado, mas nada falou. O pai era bravo. Tinha medo de contrariá-lo.
No caminho para a escola, cruzou dois sinais vermelhos. Parou em cima de faixas de segurança. Buzinou como uma besta fera, como se não houvesse amanhã. "Ninguém entende minha aflição?", perguntou-se. Ainda teve tempo de jogar pela janela a caixa de toddynho, que o filho tinha tomado. Dessa vez, o garoto encheu-se de coragem e perguntou: "pode, pai?". Irritou-se, mas respondeu, sem paciência: "eu já te disse que não tem problema. O lixeiro recolhe. É o serviço dele".
Bufou e estremeceu irado novamente quando não conseguiu lugar para estacionar perto do portão de entrada da escola, para que o garoto pudesse descer. Mas não se fez de rogado: parou ali mesmo, na fila dupla, era só um instantinho. Travou o trânsito. Sem remorso. "Bando de estúpidos, filhos da puta, não estão vendo que estou desembarcando uma criança? Seus inúteis!", resmungava, chacoalhando os braços e dirigindo-se a quem reclamava do automóvel parado em lugar proibido.
De rabo de olho, viu um fiscal da companhia de trânsito anotando a placa do carro dele em um talão de multa. "Vai, filho, vai, entra logo, preciso conversar com o moço ali". Largou o super carango último modelo do ano no mesmo lugar e correu para abordar o fiscal. "Puxa, muito bom dia, meu senhor, lamento, mas não tive jeito, sei que o senhor me entende, não tinha outro lugar... há algum jeito de a gente resolver essa questão?", perguntou, gentilmente, voz mansa, já colocando a mão no bolso e pegando a carteira.
Não teve conversa. Foi multado. Voltou para casa espumando, louco da vida. Se pudesse, teria arrebentado o marronzinho abusado. "Funcionário público é tudo vagabundo mesmo, não facilitam, é a indústria da multa". Chegando em casa, lembrou das manchetes dos jornais. Sentiu uma pontada no fígado. Ligou o computador. Entrou no twitter e no facebook. E começou a postar, freneticamente. Em caixa alta.
"GOVERNO CORRUPTO! PETRALHAS! BANDO DE LADRÕES. SAFADOS. TEM QUE SER CONDENADO MESMO, PEGAR PRISÃO PERPÉTUA. NÃO, É POUCO, PENA DE MORTE. E MAIS ESSA AGORA, AQUELE NOJENTO QUE ACABOU DE SER ELEITO JÁ ESTÁ DIZENDO QUE NÃO VAI CUMPRIR O QUE PROMETEU NA CAMPANHA. PICARETA. PILANTRA. CULPA DOS POBRES, LÓGICO, QUE O ELEGERAM. É DOSE, A GENTE RALA, ESTUDA E TEM QUE SER GOVERNADO PELAS ESCOLHAS DESSES POBRES QUE VIVEM DE BOLSA DISSO, BOLSA DAQUILO. POBRE NÃO DEVERIA TER DIREITO DE VOTO. NORDESTINO TAMBÉM NÃO. NÃO SABEM ESCOLHER, NÃO TÊM CONSCIÊNCIA....".
Parou, numa fração de segundo. Bateu a mão na testa. "Puxa, preciso fazer o artigo da pós-graduação! É para hoje!". Respirou. Sossegou. Lembrou de um texto bacana de um especialista supimpa, que tinha lido na internet - na diagonal, é verdade, mas parecia bem bom. Era só copiar e colar, ajustar aqui, mudar um pouquinho a introdução, o final. E o trabalho estaria pronto. Beleza.
Foi tomar um café. O fígado ainda doía. Não conseguia esquecer as manchetes do dia. "Esse país não tem jeito. Tinha que voltar a ditadura militar", pensou alto.

domingo, 7 de outubro de 2012

O DATAFOLHA ERROU. MAIS UMA VEZ.




Pesquisa Datafolha para a cidade de São Paulo, domingo, 07 de outubro, considerando votos válidos, com margem de erro de dois pontos (para mais ou para menos):
José Serra (PSDB) - 28%
Celso Russomanno (PRB) - 27%
Fernando Haddad (PT) - 24%

Resultado final das eleições em São Paulo (dados do Tribunal Regional Eleitoral, com 99,69% das urnas apuradas):
José Serra - 30,76%
Fernando Haddad - 29%
Celso Russomanno - 21,59%

Datafolha, não me venha com churumelas - vocês "erraram" feio, muito feio. Será que "erraram" mesmo? Sei lá, me veio a pergunta. Só pergunta. Dúvida. Vai ver interessava bastante ao jornal da alameda Barão de Limeira, historicamente ligado ao serrismo, sugerir/bancar um segundo turno entre Serra e Russomanno. Seria provavelmente mais fácil para o tucano derrotar o representante da Igreja Universal do que enfrentar o petista. O instituto tentou dar um empurrãozinho? Vai ver que sim. Só estou perguntando.

Os números são implacáveis: os 27% de Russomano na pesquisa poderiam ser, no máximo, 29%; no mínimo, 25%. Mas ele chegou ao final da disputa com 21,59%. São três pontos e meio de diferença, se considerado o patamar mínimo. Não há margem de erro que segure. 

Em relação a Haddad, os números gritam também: de acordo com o Datafolha, o petista poderia chegar, no máximo, a 26%. Chegou com 29%, coladinho em Serra. Mais três pontos. Também não há mágica de segurança que dê conta. 

Claro, já sei, foram "os movimentos de última hora, não é possível captar todos os humores dos eleitores, muita gente só decide na cabine, o instituto já apontava essa tendência, a corrida embolou no final...". Serão muitos os argumentos a "explicar essas sutis diferenças". No limite, como sempre, vão alegar que o método é seguro, que já acertaram mais que erraram. Argumento de autoridade. Não serve, não vale. Aliás, por coincidência, enquanto escrevo acompanho também o programa TV Folha, exibido pela TV Cultura (venda de espaço para jornal-empresa em emissora pública, mas essa é outra discussão). Mauro Paulino, diretor do Datafolha, está por lá, fazendo "análises e projeções sobre o segundo turno". Nenhuma palavra sobre as discrepâncias entre a pesquisa do domingo e os votos apurados nas urnas. Nenhuma. 

Aliás, leitor, veja na foto acima que a Folha (justiça seja feita, o Estado de São Paulo usou do mesmo artifício) usou duas manchetes diferentes, em clichês distintos, na mesma edição de domingo. A primeira, nas bancas já no final da tarde do sábado, era muito mais incisiva; a segunda, que chegou aos assinantes domingo cedinho, era bem mais tímida e preparava o terreno para o "tudo pode acontecer". Por quê? Sei lá. Na graduação, aprendi que você só muda a manchete de um clichê para outro quando o assunto é também outro, urgente, justamente no caso de ser preciso atualizar a edição, para dar conta de algum fato acontecido na última hora, que não se conseguiu contemplar num primeiro momento (se tivesse acontecido mais um incêndio em favela em São Paulo, por exemplo, fato bastante comum em tempos de Serra-Kassab). Mas, se o assunto continuava sendo o mesmo, qual a razão da mudança da chamada? 

Publicada em maio passado, matéria de capa que fiz para a revista "Cálculo - Matemática para Todos" já alertava: "2012 - Ano de eleições. Ano de estatística. Ano de erros". Dizia um trecho da reportagem: "autores de livros didáticos sobre estatística dizem que, para que uma amostra da população represente bem o que pensa a população inteira, cada membro da população tem de ter a chance de ser incluído na amostra. Isso significa que, se qualquer instituto quer organizar uma pesquisa para saber em qual prefeito os paulistanos vão votar, cada paulistano deve ter uma chance diferente de zero de ser ouvido. Na amostragem por cotas (que é a usada pelos institutos), contudo, assim que o instituto escolhe o lugar em que vai realizar as entrevistas (por exemplo, o mercadão), ele automaticamente exclui todos os paulistanos que nunca vão ao mercadão. A chance de que tais paulistanos sejam ouvidos fica igual a zero. (...) José Ferreira de Carvalho, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da Statistica Consultoria, traduz essa cena toda numa palavra: subjetividade". 

O lamentável é que não foi a primeira vez que o Datafolha cometeu tal "erro subjetivo".  Os exemplos são vários, muitos foram listados na matéria citada, da revista "Cálculo". Também não será o último episódio. Até quando nossas instituições democráticas permitirão que os institutos continuem a tentar influenciar com suas pesquisas os processos eleitorais?