quarta-feira, 18 de julho de 2012

"LA DOCE" - COMO ATUA UMA TORCIDA ORGANIZADA MAFIOSA


Foto: Debate na Livraria Cultura sobre 'La Doce', a torcida-máfia do Boca, com o jornalista argentino Gustavo Grabia e PVC.
Na Livraria Cultura, ao lado de Paulo Vinicius Coelho,
Gustavo Grabia define La Doce: "É máfia, Estado paralelo". 






































É bastante comum ouvir em papos de boleiros que "ninguém torce como a torcida do Boca". Trata-se de evidente manifestação de reverência e admiração pelos xeneizes, como são também conhecidos os apaixonados boquenses, que durante os jogos da equipe não param de pular e de cantar nem por um minuto, exibindo orgulhosamente suas camisas e faixas azuis e amarelas, em festas com foguetórios e papel picado, além da tradicional "avalanche", quando os torcedores descem correndo as arquibancadas, em movimentos sincronizados, para comemorar os gols. De fato, é um espetáculo futebolístico marcante. Para os brasileiros que visitam Buenos Aires, a capital argentina, o estádio de La Bombonera, no famoso bairro de La Boca, é ponto turístico, parada obrigatória.

É gigantescamente diferente, no entanto, a torcida do Boca Juniors - ou pelo menos uma parcela bastante representativa dela, a organizada La Doce, a principal do clube - revelada pelas investigações feitas pelo jornalista portenho Gustavo Grabia, do diário esportivo "Olé". Para além do futebol, La Doce surge como uma poderosa, temida e muito bem organizada instituição mafiosa. Promove brigas e roubos nos estádios, envolve-se com assassinatos, cobra pelo estacionamento de carros nas imediações do campo, vende ingressos irregularmente, ameaça jogadores, jornalistas e dirigentes, dá sustentação para candidatos em campanhas políticas e dispõe de uma fundação, com atuação legal, para lavar grana do narcotráfico. De acordo com a pesquisa de Grabia, arrecada cerca de 500 mil dólares por mês - ou algo em torno de cinco a seis milhões de dólares ao ano. 

"É uma facção criminosa, que tem relações muito próximas com a polícia, e que atua como tropa de choque e braço armado de muitos políticos", afirmou o jornalista argentino, em conversa que aconteceu na noite de terça-feira, 17 de julho, na Livraria Cultura do Shopping Bourbon Pompeia, e que contou também com as presenças de Paulo Vinícius Coelho (O Estado de São Paulo e ESPN), Wagner Bordin (globoesporte.com), José Renato Santiago (autor de "Os distintivos de futebol mais curiosos do mundo") e Joza Novalis (site futebolportenho.com.br). 

Grabia esteve por aqui para vários eventos de lançamento do livro "La Doce - A explosiva história da torcida organizada mais temida do mundo", que traz os detalhes da pesquisa feita por ele e escancara as relações perigosas mantidas pela facção e os crimes cometidos por dirigentes e associados da torcida. No bate-papo na Cultura, ele traçou um resumo da obra. Contou várias histórias. Todas estarrecedoras. Citou episódio em que um representante da unidade de polícia desportiva encarregado de fiscalizar a torcida do Boca foi levado a julgamento exatamente por desempenhar função oposta: acusado de ser o responsável por fazer chegar armas aos torcedores que entravam no estádio, sem que precisassem passar pela fiscalização e "gerais" na entrada. 

Lembrou de várias situações em que policiais, mesmo com ordens judiciais, se recusavam a entrar nas tribunas reservadas à Doce para efetuar as prisões. Tinham medo. Em outro episódio emblemático citado pelo jornalista, alguns policiais foram forçados pelo sistema judiciário a atuar de acordo com a lei e, depois de passar por carrancas, caras feias e bloqueios e corredores e cordões de proteção de torcedores, conseguiram chegar às arquibancadas. Foram violentamente atacados pelos xeneizes da Doce e tiveram suas armas roubadas. "Saíram vivos de lá por milagre. No estádio, a lei é deles, há um Estado paralelo", disse Grabia. E completou: "Dirigentes da Doce acabam sendo mais idolatrados e respeitados do que craques como Palermo ou Riquelme". Ele revelou que, na Argentina, líderes de torcidas são vistos como pop stars, verdadeiras celebridades. "Em conquistas de títulos, fotos e pôsteres dos chefes organizados carregando jogadores nos ombros são dos artigos mais procurados e desejados pelos torcedores. Vendem aos milhares". 

O jornalista recordou também indignado dos 250 torcedores organizados boquenses que viajaram para a Copa do Mundo da África do Sul, com regalias e todas as despesas pagas pela Associação de Futebol Argentina (AFA), no mesmo avião que transportou a seleção nacional. "Foram junto com Messi, Tévez, Higuaín... uma locura!". No Mundial, os barra bravas fizeram arruaças, envolveram-se em brigas e alguns acabaram sendo deportados do país. "Passamos vergonha", lamentou Grabia. Segundo ele, naquele momento as relações com a cúpula do futebol argentino tornaram-se ainda mais estreitas por conta do fato de o técnico da seleção ter sido Diego Maradona, ídolo do clube. "E Maradona tem a capacidade de se aliar com o que há de pior. Foi assim na Itália, em Nápoles, quando matinha contatos com a Camorra". 

É justamente por conta do enraizamento dessa atuação mafiosa que a violência patrocinada pelas torcidas organizadas na Argentina pode ser dividida em dois momentos distintos. Até 2002, as mortes aconteciam por conta do enfrentamento entre gangues rivais - Boca Juniors x River Plate, por exemplo. A partir daquele ano, com a profissionalização dos negócios, os confrontos passam a acontecer dentro das próprias torcidas. "As facções rivais se digladiam para ver quem vai administrar as fortunas que são arrecadadas. E há gerações de mafiosos que vão se sucedendo".

No livro, Grabia reconstrói essa genealogia. Nos anos 1960, o capo era Enrique Ocampo, também conhecido como "El Carnicero" (dispensa explicações). Foi sucedido nos anos 80 por José Barrita, o "Abuelo", sujeito truculento e autoritário e que andava sempre acompanhado por um revólver calibre 38. O reinado chegou ao fim com a prisão do líder, em meados dos 90, quando subiu ao trono Rafael Di Zeo, que sempre se gabou de "ter os telefones dos poderosos" e casou-se com a secretária particular do então governador da província de Buenos Aires, Felipe Solá, além de ser homem de confiança de Mauricio Macri, atual governador de Buenos Aires e ex-presidente do Boca.

Di Zeo acabou preso em 2007 e foi sucedido por Mauro Martín, atual líder da Doce. Solto no final do ano passado, Di Zeo foi protagonista de mais uma história tenebrosa contada por Grabia, um dos capítulos mais tristes da história recente do Boca. No final de semana seguinte à conquista da liberdade, Di Zeo foi a La Bombonera acompanhado de seus seguidores fiéis, disposto a recuperar o poder perdido. Instalaram-se nas arquibancadas de visitantes. A facção comandada por Martín também estava lá, na arquibancada oposta. O mesmo clube, duas torcidas se ameaçando e se olhando com raiva, e um clima de terror que assustou jornalistas e autoridades públicas.

Sobre a relação com políticos, Grabia lembrou que as organizadas são pagas (verdadeiras fortunas) para atuar a favor de determinadas candidaturas. Obviamente, depois cobram a fatura, na forma de proteção e privilégios, vistas grossas para os crimes que cometem. Com os jogadores, a conexão envolve o pagamento de espécie de pedágio - para não correr riscos e escapar de críticas e ataques, os atletas do clube se submetem a participar de gigantescas festas patrocinadas pela Doce, que chegam a reunir 500 mil pessoas, e onde a torcida coloca em prática mais um mecanismo para ajudar a encher seus cofres, cobrando por autógrafos e fotos com os ídolos. "É uma maneira de os jogadores tentarem viver em paz", disse o jornalista do Olé. 

Sossego, aliás, que o próprio Grabia viu ameaçado em várias situações, por conta das investigações que faz e das reportagens que publica. A torcida, obviamente, não gosta. "Mas tenho ainda mais medo da polícia que dos torcedores. Os policiais têm informação privilegiada, o respaldo do setor público. Já cheguei a receber telefonemas deles dizendo que sabem onde moro, que conhecem minha rotina, que sabem onde meus filhos estudam. Não tenho muito como me defender, é a polícia! Só me restou recorrer à chefia do jornal Clarín, o mais importante do país e responsável pelo Olé, que rebateu e disse que, se algo acontecesse a mim, o jornal publicaria denúncias pesadíssimas contra a corporação". 

Sobre o futuro, Grabia é pessimista. Para ele, acabar com as organizadas mafiosas exige vontade política. Mas o governo, beneficiado pelo estado das coisas, não atua para promover mudanças. E a degradação social vivida nos últimos anos pela Argentina só faz aumentar a procura pelas organizadas, principalmente por parte dos jovens. Os chefes das facções, de acordo com Grabia, são das classes mais abastadas; os mais pobres tocam a rotina e o serviço sujo. "Há uma fratura social também nas organizadas, divisão de tarefas. Há os que mandam e os que agem". Além disso, ele diz que o futebol é atualmente a única instituição ainda respeitada no país vizinho, que oferece identidade, reconhecimento e coesão. "Por conta disso, os jovens são facilmente recrutados. Outras utopias se foram", lamentou. 

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